Já no início do mês de março eu tinha publicado, aqui no blog, o que acabou por ser um artigo no Polígrafo sobre a saúde física e mental das nossas crianças e adolescentes no contexto da pandemia. Tal como descrevo no texto integral, no primeiro confinamento, em março de 2020 (subscrevo uma frase que ouvi na segunda-feira na rádio M80, quando ia trabalhar, por parte de uma das locutoras, a Susana Romana), "parece que nunca saímos de março de 2020". Isto foi dito num contexto de humor, mas na realidade é mesmo isso que eu sinto. Que todo este ano foi um looooooongo março. E logo março, que dá as boas vindas a uma das estações mais bonitas, que é a primavera.
Isto para vos dizer que em abril, maio e parte de junho de 2020 estive em regime de teletrabalho, e como também faço algum trabalho com famílias carenciadas, chocou-me enquanto pessoa e profissional a crise social, e de desigualdade, que este primeiro confinamento acentuou. Pais sem escolaridade e sem acesso às tecnologias a tentar ajudar os filhos a resolver fichas que nem eles próprios conseguiam resolver. E mais do que o não resolver, o ter de assegurar pão na mesa para as suas famílias com o seu trabalho, sendo muitas vezes necessário o rendimento de ambos os pais para manter as necessidades básicas (tal como a pirâmide de Maslow que podem ver, as necessidades fisiológicas e de segurança são as mais básicas do ser humano). Só satisfazendo estas necessidades é que o ser humano, no geral, vai subindo os "degraus" desta pirâmide, até chegar à auto-realização. E o que esta pandemia veio trazer a lume (ou se calhar, não trouxe, porque esta grave crise permaneceu dentro de portas, imposta pelo confinamento) foi isso mesmo. A franja da população com a felicidade de ter as suas necessidades básicas asseguradas manteve as necessidades psicológicas mais ou menos intactas (mais ou menos, não é à toa que dispararam os casos de depressão), com mais ou menos "passeios higiénicos", com mais ou menos malabarismo para equilibrar o teletrabalho com a educação dos filhos... e o longo "março de 2020" levantou a sua cortina no verão, altura em que nos foi permitido respirar um pouquinho de alívio, e nos foi garantido pelos decisores do nosso país que estaríamos preparados para uma "segunda-vaga", que sabíamos de antemão, pela experiência estrangeira, que iria acontecer. Não tínhamos como escapar. Portanto, entre promessas de reforço de meios humanos e técnicos no sistema nacional de saúde, bem como de preparação das estruturas de suporte da comunidade, nomeadamente as escolas para o inevitável, foi-nos permitido vislumbrar uma "luzinha" ao fundo do túnel. Iria chegar a vacina, havia um plano. E o ser humano adora planos. Os planos dão-nos segurança, esperança e confiança.
Mas eis que chega dezembro de 2020, e um novo ano bate à porta. Toda a população assiste ao disparar em flecha do número de infetados, do número de internados, do número de mortos. E cada morto tem um nome, não é só um número. É o avô Joaquim, a tia Maria, o bisavô José. De repente cada família passa a conhecer alguém que teve ou , mais grave, morreu com COVID-19. O SNS entra quase em rutura, e os decisores aguardam, reúnem, discutem... os dias vão passando, as mensagens passadas são contraditórias e, consequentemente, a comunidade vê-se sem a força de uma liderança clara, empática, mas contentora. Quase podemos comparar o papel dos nossos decisores na nossa comunidade com o papel de pais que temos para os nossos filhos. Esperamos dos nossos pais a sensação de estarmos seguros, e de que o caminho que percorremos, independentemente do mais ou menos difícil, será feito com a confiança de que nunca nos abandonarão, aconteça o que acontecer. E nessa altura fomos mesmo abandonados, cada um à sua sorte, e fomos "castigados" por sermos maus filhos, irresponsáveis, a colocar a vida de outrem em risco. Mas na realidade, o que é que cada educador sabe? Que aprendemos mais com o bom exemplo do que com comportamentos punitivos. E afinal, onde é que andava o bom exemplo? Nada disso, levámos mas foi com a bela da "palmada terapêutica".
E eis que chega a vacina. A tão desejada vacina. Seria agora que íamos respirar de alívio? De certeza. Havia um plano. É certo que não íamos poder descurar as medidas de segurança básica, as máscaras, a correta higiene das mãos. Mas será que podíamos permitir-nos finalmente ver a tal luzinha no fundo do túnel? Estabelecem-se os grupos prioritários, "bora lá", agora é que "vamos todos ficar bem". Errado. O plano, afinal, não era bem um plano. E nem nos permitiu sequer dizer "deixa lá, não conseguiste, mas fizeste tudo o que podias..." Não fizemos, claramente, tudo o que podíamos. Não nos preparámos para o que já sabíamos de antemão que vinha aí. Vêm a lume casos de uso indevido de vacinas, enquanto quem está na linha da frente, profissionais de saúde, professores, pilares de uma comunidade forte, aguardam a sua vez. Sobre este assunto acho que digo tudo quando vos digo - estou a trabalhar, estou em regime presencial, faço consultas todos os dias, mas por estar apenas no sector privado ainda hoje estou à espera de ser vacinada. E como eu, ou ainda pior, porque lá está, como pediatra, lido com um grupo etário que felizmente não é tão atingido pela doença, ao contrário de profissionais que trabalham no serviço de urgência, ao contrário de professores que eles próprios fazem parte de grupos de risco, ou têm mais contactos com grupos de risco.
E todas estas reflexões para chegar a uma partilha que se reveste de extrema importância. No passado dia 1 de março o Colégio de Pediatria, por intermédio da Sociedade de Pediatria, lançou um comunicado/posição exatamente sobre o impacto nas crianças da COVID-19, do encerramento das escolas, e do papel que esta geração vai ter no futuro. Faz referência à clivagem social, ao desespero e à falta de necessidades básicas que se esconde por trás de cada porta cujo letreiro é "confinamento", por favor "não entrar".
É esse documento que vos convido a ler, e a refletir sobre ele. A comunidade somos todos nós.
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