No passado sábado, dia 27 de fevereiro, tive oportunidade de falar um pouco sobre a vacinação em idade pediátrica, algo sobre o qual afirmei ser, em verdade, das poucas coisas em pediatria nas quais me considero ser uma verdadeira fundamentalista.
Sou uma acérrima defensora do nosso Programa Nacional de Vacinação português, e das vacinas extra-programa tal qual as recomendações atuais da Comissão de Vacinas da Sociedade Portuguesa de Pediatria e da Sociedade de Infeciologia Pediátrica (acessíveis em https://www.spp.pt/UserFiles/file/Seccao_Infecciologia/recomendacoes%20vacinas_sip_final_28set_2.pdf )
Ter a felicidade de poder beneficiar gratuitamente e universalmente de vacinas que protegem contra doenças potencialmente fatais, e até de cancros, é algo em medicina e saúde que não tem comparação. É um direito, mas também um dever cívico de qualquer cidadão, uma vez que ao vacinarmo-nos e ao vacinarmos as nossas crianças e adolescentes, protegemos toda a comunidade. Portanto, é um ato de responsabilidade social, numa sociedade que se vê cada mais de dia para dia egocêntrica e auto-centrada.
Tive também a oportunidade, neste live, de explorar um pouco o que é atualmente conhecido como o movimento anti-vacinação, e a origem deste tipo de movimento. Isto leva-nos a uma história que de graça não tem nada, e que passo a descrever.
Em 1998, o Dr. Andrew Wakefield e os seus colaboradores (13 colaboradores) publicaram um artigo, na conceituada revista inglesa Lancet, alegando uma relação entre o autismo e a vacina tríplice contra o sarampo, rubéola e papeira epidémica (VASPR). Nessa altura importa dizer que esta vacina era administrada aos 15 meses de idade (1ª dose) e a dose de reforço entre os 5 e os 6 anos. Também na altura o Lancet, conjuntamente com a revista New England Journal of Medicine eram das revistas médicas mais conceituadas.
O artigo, intitulado “[Wakefield AJ, Murch SH, Anthony A, Linnell J, Casson DM, Malik M, et al. Ileal-lymphoid-nodular hyperplasia, non-specific colitis, and pervasive developmental disorder in children. Lancet. 1998;351(9103):637-41]” teve um impacto estrondoso. Inicialmente em Inglaterra, e posteriormente um pouco por todo o mundo, muitos pais deixaram de vacinar os seus filhos contra estas doenças, o que condicionou um aumento do número de casos principalmente de sarampo, uma doença potencialmente fatal. Vários estudos na década subsequente nunca comprovaram a ligação desta vacina com o autismo, mas o mal a essa altura já estava feito, sendo que a taxa de vacinação no Reino Unido nunca mais voltou a subir (baixou para cerca de 80% entre 2003 e 2004), e ocorreram surtos de sarampo em Inglaterra, levando que em 2008, e pela primeira vez em 14 anos, o sarampo foi considerado endémico em Inglaterra e no país de Gales.
Dos 12 coautores do artigo, 10 tinham já repudiado as conclusões do mesmo artigo há vários anos (em 2004), até que em fevereiro de 2010 a própria revista Lancet pediu desculpa pela publicação deste artigo, retirou o artigo do seu arquivo público, e emitiu uma declaração a dizer que este artigo jamais devia ter sido publicado. A investigação realizada trouxe a lume que o médico Andrew Wakefield trabalhava para os pais das 12 crianças que integravam o estudo, pais estes que culpavam a vacina pelo autismo dos filhos e queriam processar os produtores da vacina, e ainda mais grave, o mesmo médico para poder fazer a comparação com outras crianças retirou amostras de sangue de meninos convidados para a festa de aniversário do seu próprio filho, pagando 5 libras a cada criança pela sua “colaboração”. Este mesmo médico, segundo a investigação levada a cabo por outra revista médica de grande impacto (o British Medical Journal) revelou exatamente o montante que o médico Wakefiel tinha recebido dos advogados destes pais (cerca de 435 mil libras), e que 3 das 12 crianças “usadas no estudo” tinham já uma perturbação do desenvolvimento antes sequer de terem sido vacinadas, sendo que outras 3 nunca foram sequer diagnosticadas com autismo.
Em 2019 a OMS incluiu nos 10 principais riscos a ameaçar a saúde da humanidade os movimentos antivacinação, por este movimento colocar em risco “o progresso na luta contra as doenças evitáveis”, dando como exemplo o aumento em 30% dos casos de sarampo nos últimos anos. Alguns países na europa, como é o caso de Itália, que em 2017 teve um surto de sarampo que levou a que em 2019 fosse implementado um programa de vacinação obrigatório até aos 16 anos (crianças com menos de 6 anos não vacinadas não podem frequentar a pré, e no caso da escola primária podem frequentar mas com aplicação de multa).
Em maio de 2010 o conselho geral de Medicina de Inglaterra condenou o Dr. Wakefield por “comportamento profissional impróprio grave”, e “ter agido de forma desonesta e irresponsável” proibindo-o de exercer medicina no Reino Unido e aplicando a pena de expulsão. Do outro lado do atlântico, nos Estados Unidos, um outro médico James Jeffrey Bradstreet relacionou não apenas a vacina contra o sarampo mas as vacinas em geral ao autismo, isto porque para ele o problema estava na toxicidade do mercúrio presente nas vacinas. Esta teoria foi rejeitada pela maioria da comunidade médica e científica mundial. Este médico dizia que as crianças autistas tinham quantidades de mercúrio no corpo maiores do que as crianças sem autismo. E chegou a usar nas crianças com autismo um tratamento com medicamentos chamados “quelantes” para eliminar metais pesados do organismo. Durante cerca de 20 anos este médico alimentou um movimento antivacinação nos EUA, e ficou conhecido como um dos maiores ativistas neste sentido, publicando artigos variados nas revistas Journal of American Physicions and Surgeons. Em 2015, depois do seu consultório ter sido alvo de uma busca pela Food and Drug Administration (o regulador FDA do medicamento norte-americano), o corpo do médico, na altura com 61 anos, foi encontrado por um pescador num rio da Carolina do Norte. A autópsia revelou que tinha um ferimento de bala no peito, e suspeita-se que ter-se-á suicidado.
Infelizmente as consequências deste artigo e estudo ainda hoje perduram, e são a base de muitos movimentos antivacinas, apesar dos múltiplos estudos feitos posteriormente a desmentir ambas estas teorias.
A história do PNV em Portugal
O Programa Nacional de Vacinação (PNV) em Portugal foi criado em 1965, e a única doença erradicada através da vacinação foi a varíola, em 1980, altura em que a vacina foi retirada do PNV português. As restantes vacinas vão sendo adicionadas, ou sofrendo alterações no seu esquema vacinal, de acordo com a situação epidemiológica, a evidência científica do seu impacto, a relação custo-efetividade e disponibilidade no mercado. Têm sido feitas várias revisões ao PNV, sendo que a última data de dezembro de 2019, tendo entrado em vigor em outubro de 2020 ou PNV de 2020.
A título de curiosidade, pode dizer-se que as alterações mais recentes foram a inclusão da vacina antimeningocócica B no PNV, a ser efetuada no esquema 2,4 e 12 meses, e a expectativa da introdução da vacina antirotavírus no mesmo PNV, para os designados grupos de risco, até à data ainda não definidos pela Direção Geral da Saúde (DGS). Foi ainda alargada a vacinação do papilomavírus (HPV) aos 10 anos para o sexo masculino.
Previamente no PNV de 2017 tinha sido retirada a vacina BCG (retirada oficialmente do PNV em junho de 2016, sendo que a partir desta data a DGS definiu os grupos de risco elegíveis para a vacinação com esta mesma vacina), tinha sido definida a idade especificamente para a administração da 2ª dose da vacina VASPR e reforço da vacina contra a difteria, tétano e tosse convulsa (DTPa) e da vacina injetável contra a poliomielite (VIP) aos 5 anos de idade, para além da introdução da vacina do HPV aos 10 anos para o sexo feminino, com a vacina HPV nove-valente. Outra alteração foi a introdução da vacina Tdpa (vacina contra o tétano, difteria e tosse convulsa, dose reduzida) às grávidas entre as 20 e as 36 semanas de gestação.
Presentemente, o PNV de 2020 é o que se apresenta nesta figura, e todas as vacinas nele contempladas são seguras, eficazes, e cada uma importante à sua maneira para proteger a saúde da nossa comunidade.
Para mais informações, e para ouvir o live diretamente, onde ainda são abordadas as vacinas extraprograma nacional de vacinação, aceda ao meu vídeo no IGTV do instagram em https://www.instagram.com/tv/CLy3zq5HbSz/
Espero que com esta informação, eu possa trazer cada vez mais saúde para os vossos filhos. Porque a boa informação em saúde não tem preço.
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